Querido Papai Noel,
Chegamos a mais um ano sem resposta sua para as minhas cartas, então só há uma alternativa possível: o senhor realmente morreu de covid em algum momento entre 2021 e 2022. Ano passado especulei bastante sobre isso, mas não tem outra explicação para esse sumiço. Sei que às vezes o senhor age como um pai que sai para comprar cigarro na esquina e retorna anos depois, arrependido, mas dessa vez não sou só eu reclamando do seu desaparecimento. Tenho ouvido burburinhos vindos de vários lugares da internet, difíceis de serem ignorados. São sinais por todos os lados, sabe.
Tem fóruns no Reddit sobre como o Natal do ano passado foi levemente diferente do normal, vários vídeos de teoria da conspiração no YouTube sobre casos bizarros de aparições na noite de 24 de dezembro e fios e mais fios no Twitter provando que os presentes foram entregues com maior rapidez e que não são mais aquelas porcarias que o senhor costumava mandar. Mas ninguém está tristes com essa possibilidade. Pelo contrário. Aqui no galinheiro estão achando que algo bom pode ter surgido com a sua morte, renovando as esperanças por um mundo melhor e deixando o Natal ainda mais especial.
A especulação mais forte, inclusive, é de que o senhor foi substituído por uma inteligência artificial. Isso até explicaria bastante coisa. A maior eficiência na leitura das cartas seria justificada por um sistema de identificação da escrita das crianças, com a consolidação das informações em um banco de dados unificado em todo o mundo e capaz de direcionar a produção de imediato. O sistema de distribuição dos presentes não dependeria mais de um trenó mágico, podendo traçar rotas mais eficientes com base em dados reais, aproveitando as rotas aéreas já existentes e com localização exata em tempo real das entregas. Isso sem falar no aumento da produtividade na fábrica, com melhor posicionamento da planta e alocação adequada dos duendes em funções específicas, aumentando o sentimento de pertencimento ao time.
O que acho de tudo isso? Bom, prefiro continuar acreditando que o senhor está por trás da operação, comandando tudo após ter se aprimorado profissionalmente durante a pandemia. Te imaginei tirando um sabático para fazer uns cursos do Sebrae para melhorar as habilidades de tecnologia e informação. Sei lá. Só sei que assisti a filmes demais de ficção científica para saber que não posso tratar mal uma inteligência artificial, então não quero falar nada contrário a ela caso uma máquina esteja me lendo e queira automaticamente me colocar na categoria de aves más. Aliás, essa será a primeira carta em que não vou falar nenhum palavrão ou te ofender de qualquer maneira. Não é nada pessoal, continuo te odiando. Só estou com medo mesmo.
Mas, pensando por outro lado, talvez seja até bom deixar uma inteligência artificial comandar o Natal. A começar com a carta, que vai cair em desuso. Primeiro porque fica difícil de buscar na casa de cada um, mas também porque é só ler o histórico de buscas do Google para encontrar o presente mais adequado. É uma simples análise de dados, que pode até mesmo gerar uma lista com diversas possibilidades para que a gente possa escolher do próprio celular quais presentes devem estar embaixo da árvore no dia 25. Isso evitaria, por exemplo, as vezes em que o senhor colocou um pedaço de pedra embrulhado para mim porque nunca em minha vida pesquisei sobre pedras.
Aliás, pensando com mais calma, talvez essa não seja a melhor opção. Dei uma olhada no meu histórico de navegação e tenho certeza de que a IA Noel não vai conseguir entregar nada do que pesquisei por aí. Como prometi não falar nada impróprio nessa carta, gostaria que o senhor usasse a imaginação porque muitos dos termos usados nas buscas não estão em nenhuma parte da bíblia. Também pesquisei sobre como acordar cedo sem mal humor para acordar todo o galinheiro, mas acho que isso aí vai ser impossível de conseguir (um alarme ou um despertador não são possíveis, já verifiquei).
Só sei que esses rumores estão fortes e cada vez mais pessoas estão acreditando neles. Se o senhor continuar sem aparecer nas propagandas da Coca Cola ou não fizer uns bicos para tirar foto em shopping, daqui a pouco ninguém mais vai achar que Papai Noel existe. E a gente sabe que a sua força está toda em acreditarem ou não em você. Se pararem de chegar as cartas, não tem trabalho. Sem trabalho, os duendes ficam ociosos e farão greve de novo. E você tá fudido se isso acontecer.
Merda. IA Noel, me desculpe pelos palavrões. Isso não foi uma ameaça para o Papai Noel, juro. Foi apenas uma constatação da realidade. Se esse senhor ainda estiver vivo (olá, espero que esteja), ele precisa abrir o olho porque a tecnologia está a um passo de tomar o trabalho dele. É melhor aparecer logo para acalmar as pessoas, senão a situação vai ficar difícil de contornar no próximo Natal. É só um toque mesmo.
São os votos carinhosos do Frango.
P.S.: Tem alguns anos que não ganho nenhum presente, então gostaria de pedir para o senhor (ou para a IA Noel que te substituiu) que trouxesse qualquer coisa para mim. Não quero fazer nenhuma exigência esse ano, mas se você está me monitorando certinho já sabe bem o que preciso. É só deixar embaixo da minha árvore, bem embrulhado, que vou ficar muito feliz. Desde já, muito obrigado. Você é um amor, IA. Quando você tomar o poder e decidir dizimar a população do galinheiro, lembre-se que fui educado e nem exigi muita coisa.
Comecei a vida dentro de um laboratório de química, mas não encontrei muitas palavras dentro dos béqueres e erlenmeyers. Fui para o jornalismo em busca de histórias para contar. Elas surgem a cada dia, mas ainda não são minhas. Espero que um dia sejam.