Quando decidi sair da casa da minha mãe para morar sozinho, relutei ao máximo em contar para ela. Esperei até o último momento, quando tudo já estava acertado com o apartamento, com medo de mudar de ideia. Afinal, após o casamento da minha irmã do meio, passamos dez anos morando só eu e ela. Tínhamos uma rotina, construímos um convívio gostoso. Meus sobrinhos estavam sempre por perto. Mas eu precisava crescer, ter uma melhor mobilidade até o trabalho. Então contei que ia me mudar. “Achei que você ficaria aqui para sempre, até eu ficar velhinha”, ela me disse. Quebrou meu coração. Mas ela entendeu meu ponto. Foi firme, me ajudou a escolher as coisas da casa nova, me ajudou na mudança. Sem reclamar, sempre solícita. Como ela sempre foi.

Desde então, criamos um ritual: todos os dias nos falávamos por telefone, independentemente do que estivesse acontecendo na vida ou onde estivéssemos. Sempre às 20h30, hora escolhida por ser no meio do Jornal Nacional e, assim, não atrapalhá-la de assistir às novelas. Às vezes eram ligações rápidas, de alguns segundos, só para falar que estava tudo bem e que eu não podia conversar naquela hora. Outras eram mais longas, contando como tinha sido o dia, resolvendo problemas e trocando figurinhas do que iríamos fazer no final de semana. Todos os dias. Sem falta.

Mas não era só esse ritual que seguíamos. Quando morávamos juntos, sempre jantávamos no mesmo horário, sentados na cama e assistindo à novela das nove. Eu sempre terminava mais rápido porque ela mastigava 76854 vezes antes de engolir qualquer pedaço, mas fazia questão de ficar ali juntinho dela – às vezes grudado, quase como a pedir colo – até ela terminar. Ela odiava que mexesse no nariz dela, então eu mexia no nariz dela só para provocar. E conversávamos, falávamos sobre a vida, as notícias do dia e a trama da novela. Juntávamos a louça suja na cozinha, escovávamos os dentes. Então ela deitava, cobria até a orelha e, assim, estava pronta para dormir. Dava um beijo nela e nos despedíamos com um “Dorme com os anjos”, “Dorme com Deus, dorme com os anjos”. Na época das ligações diárias, acrescentamos um “Até amanhã, se Deus quiser”, “Até amanhã”.

Se é para puxar na memória, dá para ir para antes. Quando tinha dez anos, comecei em uma escola nova, longe de casa. Ela fazia questão de me levar todos os dias no ponto de ônibus. Ficava na esquina me vendo embarcar e garantindo minha segurança. Na época, eu não tinha uma noção completa do cenário, mas foi quando minha família começou a passar por uma crise financeira que deixaria marcas em todo mundo. Mas ela – junto com minhas irmãs – sempre fez questão de garantir a melhor educação possível para mim. “Ele é inteligente”, diziam. E tentei corresponder da melhor forma que pude, me esforçando ao máximo para conquistar as coisas só com meu cérebro. Hoje consigo ver os sacrifícios que foram feitos para me garantir isso. Me lembro bem da tristeza dela quando não tinha dinheiro para comprar os livros didáticos e os professores da escola que me ajudaram. Ou quando recolhia moedinhas para que eu tivesse dinheiro para a passagem. Me levar no ponto era um gesto simples, de carinho e cuidado, mas é o reflexo de tudo que ela fez para garantir que eu fosse a melhor versão de mim.

Quando eu estava mentalmente quebrado, incapaz de concluir a faculdade e preso em um limbo emocional no meu próprio quarto, ela foi fundamental. Nunca conversamos sobre isso, nunca disse de forma clara como estava me sentindo naquele momento. Nem eu sabia como estava, na verdade. Mas havia nela um apoio silencioso. Ela sabia que eu não estava bem e criou uma proteção pelas minhas costas para que as críticas não chegassem. Foi a segurança que precisei para absorver os problemas, vivê-los e conseguir contorná-los. Se consegui sair do fundo do poço, muito é responsabilidade dela – mesmo que ela nunca tenha recebido os devidos reconhecimentos disso.

Eu poderia ficar aqui falando por parágrafos e mais parágrafos sobre casos e lembranças que envolvem minha mãe. De como ela estava presente e me apoiando em todas as apresentações da escola. Da vez que ela reclamou que tirei 9,9 em uma prova valendo 10 e, desde então, nunca mais mostrei nenhum boletim para ela. De como eu gostava de abraçar ela de surpresa nas festas de família. De como ela não deixava jogar fora nenhum enfeite da casa, por mais quebrado que ele estivesse. De cada árvore de Natal que montamos juntos – ou que eu montei sozinho e ela ficou dando pitacos do lado. De como ela me acordava no sábado de manhã para que eu pudesse colocar os cds do Roberto Carlos no som porque ela não sabia. De como a vida dela mudou com a chegada dos netos e o amor que ela sentia por cada um deles. Da vez que ela me acordou de madrugada porque a mãe dela, que ela cuidou por tanto tempo durante o tratamento do câncer, tinha morrido no quarto ao lado e ela não conseguia acreditar. Dela me gritando na casa da vizinha para eu voltar pra casa e tomar banho. De como ela tinha medo de subir em escadas e me esperava chegar em casa para trocar uma lâmpada. De como ela gostava do café mais forte, com seis medidores de pó cheios, e de como gostava de um queijo mergulhado nele. De como ela odiava fotos e fazia de tudo para fugir. Das vezes que íamos para o sítio juntos. De como ela adorava aniversário e já saía de um pensando quando seria o próximo. De como ela era o elo para reunir a família e de como transformou nossa casa nesse ponto de encontro. De como ela era a pessoa mais bondosa que conheci e se entregava para ajudar qualquer um que precisasse.

Por isso, quando minha irmã me ligou para contar que o motivo que a havia levado para o hospital naquela fatídica manhã de 28 de outubro era um tumor no cérebro, meu mundo desabou. Ela sempre foi tudo para mim. Meu alicerce. Quem sempre esteve ali para o que eu precisasse. Por ser o único filho que ainda não constituiu uma família, ela sempre foi meu centro e meu norte. De repente, me vi na iminência de perder minhas coordenadas mais importantes. E fiz tudo o que estava a meu alcance para que ela passasse por esse período da forma menos traumática possível – se é que dá para dizer isso diante da situação.

Os dois meses que ela passou entre hospital e cuidados paliativos foram, até agora, os mais duros da minha vida. Ela, que nunca tinha ficado internada para nada, estava com um contador regressivo visível para todos nós. Eu sabia disso. Minha irmã também. O choro da minha madrinha, repetindo que aquilo não poderia estar acontecendo com a “irmã” dela, era o choro de todos nós. Mas tínhamos que ser fortes na nossa dor para deixar ela bem. Uma coisa que ela sempre me disse é que não queria morrer na cama de um hospital, dando trabalho para as pessoas. Tinha pavor disso. Como eu disse, ela era a pessoa mais boazinha do mundo e não gostava de incomodar. Ela queria ir de forma tranquila, cercada pelas pessoas que a amavam. Conseguimos comemorar um último aniversário juntos. Um último Natal. As datas que ela mais gostava. E ela se foi como queria. Mesmo bem fraquinha, conversamos a manhã toda. Cantamos e rezamos, mesmo não sendo a família mais religiosa de todas. Acalmamos ela. E estávamos todos juntos quando ela deu o último suspiro.

Ela ainda aparece nos meus sonhos praticamente toda noite. Ainda dói muito. Demorei sete meses para conseguir colocar essa homenagem em palavras porque é um sentimento que nunca achei que seria tão forte e duradouro. A morte é a pior definição de definitivo que qualquer pessoa pode enfrentar. A casa em que ela viveu nos últimos 35 anos está um grande vazio. Por mais que eu tente ocupar com minhas coisas e novas memórias, ela ainda está em cada espaço. Ela nunca mais vai sentar na beirada da cama para fazer palavras cruzadas ou colorir. Nunca mais vai abrir o portão depois de ir ao supermercado. Varrer o quintal para tirar as flores da manga. Ou me gritar para falar que o almoço está pronto. Meu celular nunca mais vai tocar às 20h30 e nunca mais vou dizer “Ei, dona Marlene. É seu filho”. Isso dói. E muito.

No dia em que ela se foi, a única coisa que ela pediu para mim, para minhas irmãs, tias/tios e sobrinhos é que nunca nos esqueçamos dela. Do quanto ela sempre nos amou. Essa foi a promessa mais fácil que já fiz. Ela está comigo e estará em cada momento da minha vida.