Os meninos que enganavam nazistas

Joseph Joffo
Publicado originalmente em 1973
Tradução: Fernando Sheibe
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**Contém spoilers sobre o livro**

Observar a Segunda Guerra Mundial sob o ponto de vista dos judeus que viveram naquele período é uma experiência marcante, independente da mídia em que a história é retratada. Nos dias atuais, em que o negacionismo histórico tem ganhado força, é ainda mais importante ouvir quem esteve lá para entender os horrores e evitar repeti-los no futuro.

Os meninos que enganavam nazistas é mais uma obra autobiográfica sobre esse assunto, que retrata como os irmãos Joffo (Maurice, 12 anos; e Joseph, 10 – o narrador) precisaram abandonar Paris para sobreviver durante a invasão alemã, em 1941. Publicado 32 anos depois dos fatos retratados, ele é narrado em primeira pessoa, mesclando uma visão infantil sobre os acontecimentos com a percepção do adulto que está escrevendo a história.

Essa é uma ideia promissora, já que poucas obras mostram como os judeus franceses foram impactados pela 2ª Guerra Mundial. A invasão ocorreu em maio de 1940 e, em julho do mesmo ano, foi assinado um tratado de paz que dividiu a França em duas. Ao norte, uma região ocupada pelos alemães; ao sul, uma região livre, mas que colaboraria com o regime nazista. O acordo envolvia a desmobilização da força militar e a deportação dos judeus para os campos de concentração. Com o passar dos anos, a saída da Itália da guerra e as derrotas na frente russa, essa situação francesa foi se agravando. Foi só em junho de 1944, com o desembarque das tropas Aliadas na Normandia (o famoso Dia D) que esses ventos começaram a mudar.

Mapa da França, mostrando o norte ocupado pelos nazistas e a zona livre ao sul
Esse era o contexto da França na época. As áreas verdes eram comandadas pelos italianos.

E, de fato, temos no livro muitos vislumbres desse contexto histórico. Podemos ver como foi o avanço da intolerância contra os judeus, o cerco promovido pelos alemães, as deportações para os campos de concentração e os racionamentos dos mais diversos produtos, que afetaram toda a população. Acompanhamos, também, como algumas pessoas estavam a favor do novo regime, como era o medo de ser denunciado a qualquer momento e como as cidades do interior também foram impactadas pela atuação da S.S.

Mas, por não ser o propósito do livro, isso tudo é retratado de forma muito discreta. Como a narração é feita sob o ponto de vista de uma criança, esse contexto histórico é passado apenas nos pequenos detalhes. Quando os garotos precisam comprar roupas de frio, por exemplo, a falta de tickets é um impeditivo. O mesmo ocorre com determinados gêneros alimentícios. As viagens de trem são sempre difíceis e abarrotadas de pessoas, com muitas vistorias feitas pelos soldados. Mas, infelizmente, nada é muito aprofundado.

Até mesmo porque a força deste livro não está nesse tipo de reflexão, mas sim em como as crianças precisaram se virar sozinhas nesse ambiente hostil. É um livro que trata mais sobre a família do que sobre a guerra em si. Mais no companheirismo dos irmão do que nas ações dos nazistas.

O pai de Joseph e Maurice os mandou embora de casa muito novos, em uma clara estratégia de dividir a família para dificultar a captura. Os dois, então, precisaram cruzar a França para encontrar um lugar seguro para ficar. Eles vão de Paris até Dax (perto da fronteira com a Espanha), rodam o sul até chegar a Nice (quase na fronteira com a Itália), e retornam pelo centro. O mapa abaixo pode dar uma noção melhor desse caminho:

Mas, apesar de todo esse trajeto, a história da fuga dos dois irmãos não tem o mesmo peso de diversas outras que já consumi sobre o assunto. Eles saem de Paris com o auxílio dos pais, com dinheiro no bolso e razoavelmente em segurança. Durante todo o trajeto, têm o apoio dos familiares e um lugar para ir. Isso sem falar nas inúmeras ajudas de estranhos para fugir dos oficiais da S.S. ao longo de toda a história.

É o padre no trem, que afirma estar com eles para que não seja necessário apresentar os documentos. É o médico que mente sobre as condições da circuncisão dos garotos. É o arcebispo francês, que intervém para que eles sejam libertados na única situação de perigo real presente na história. É o dono do acampamento que praticamente se sacrifica para salvá-los. Se não fosse uma história real, eu diria que há muitas coincidências para ser verossímil.

A força, porém, está na escrita ingênua e, ao mesmo tempo, reflexiva sobre a perda da infância. Por tudo se passar pelo ponto de vista do Joseph, ele demora a entender o verdadeiro perigo e isso fica bem claro para o leitor. E por estar contando sobre a própria vida, o autor nos faz pensar sobre a importância da memória e como ela pode ser modificada com o tempo.

“Trinta anos se passaram. Tanto a memória quanto o esquecimento podem ter modificado pequenos detalhes. Mas o essencial está aí, em sua autenticidade, com seu lado terno, seu lado cômico e sua forte dose de angústia.”

Mas, mesmo que o livro nos faça importar com os personagens, minha sensação é a de que os dois meninos estavam cercados por uma rede de proteção e não corriam um perigo real. Por isso, quando vem a notícia de que o pai foi levado para um campo de concentração – e, ao que tudo indica, seria morto –, não senti o impacto. Porque, no fundo, acreditamos que ele ainda pode voltar, como diversas vezes ocorreu ao longo dessa mesma história.

É uma boa leitura, mas passa longe de estar entre as melhores sobre esse tema. De cabeça, consigo pensar em diversas obras literárias ou cinematográficas que retratam casos reais e ficcionais mais impactantes do que os contados neste livro. O pianista, A lista de Schindler, A menina que roubava livros, O menino do pijama listrado, Bastardos inglórios, A vida é bela, Band of brothers, O diário de Anne Frank e Maus são apenas alguns exemplos. Mas isso não invalida a experiência e a importância de um relato como esse, que precisa ser lido para evitar que volte a acontecer.

Cena da adaptação cinematográfica, em que o padre salva as duas crianças no trem
Uma das muitas ajudas que eles recebem no caminho

Posfácio

A parte mais interessante de todo o livro é o posfácio. Escrito em 1992, quase 20 anos após o lançamento da obra, traz uma reflexão sobre os impactos dessa história junto aos leitores, principalmente as crianças que não viveram aquele cenário de guerra. Joseph Joffo responde às perguntas mais frequentes e é sincero sobre alguns pontos que percebi como problemas durante a leitura.

O principal é que o livro não tem grandes pretensões literárias. Ele é um grande desabafo sobre o momento mais difícil da vida dessa família e o autor deixa isso bem claro no posfácio. Ele, inclusive, continuou a escrever obras biográficas por bastante tempo, o que acabou gerando desconfiança no meio literário sobre as suas capacidades de escrita – superadas no futuro. Mas o mais interessante é o que ele fala sobre o medo e se eles se consideram heróis:

“Não creio que se deva confundir instinto de sobrevivência com heroísmo. Heroísmo é escolher deliberadamente colocar sua vida em perigo por uma causa que se considera justa e bela. (…) Nós estávamos acuados, encostados na parede, não tínhamos outra escolha senão nos defender. E, para dizer tudo, eu simplesmente achava besta demais morrer sem ter conhecido o amor.”

A tradução do título

No início dos anos 2000, dois livros sobre crianças na Segunda Guerra Mundial ajudaram a popularizar ainda mais as narrativas desse tipo: A menina que roubava livros (Markus Zusak, 2005) e O menino do pijama listrado (John Boyne, 2006). Apesar de serem excelentes leituras, seus títulos geraram um mal para o mercado editorial brasileiro. Depois deles, houve uma enxurrada de obras lançadas com o título “A menina…” ou “O menino…”, tentando pegar carona no sucesso.

Fiz essa introdução porque só uma decisão de marketing explica a tradução do título deste livro. Em francês, ele foi intitulado Un sac de billesUm saco de bolinhas de gude, em tradução livre. Faz sentido com a trama e não entrega o que vai ser contado na história. A versão em português segue a tradução dada para o filme (lançado em 2017) que, sinceramente, não faz sentido. Os meninos não enganam os nazistas de fato (talvez apenas em um caso), mas recebem muita ajuda de terceiros para sobreviver naquele cenário de guerra.

Por mais que eu entenda que Um saco de bolinhas de gude não seja um título comercial, o escolhido perde todo o simbolismo do original. Sai a metáfora sobre os momentos de pureza das crianças (além de representar a moeda que eles usavam antes da guerra e a troca da identidade judia, representada pela estrela) e entra uma tradução literal da trama. Podiam ter se esforçado um pouquinho melhor nessa.

Cena do filme com os dois irmãos jogando bolinha de gude em um chão cheio de neve
Antes de tudo, eram apenas inocentes jogos de bolinha de gude

Os filmes

Se é para fazer uma crítica completa dessa história, vamos mergulhar de cabeça também nas adaptações cinematográficas feitas. Ao todo, duas foram lançadas: uma em 1975 e outra em 2017. Assisti às duas para dar uma opinião mais certeira e digo que a mais atual foi a que melhor adaptou a história para o audiovisual.

O ponto central é que o filme de 1975 modifica bastante as características de alguns personagens. Quando falei sobre o livro, apontei que ele tinha poucos conflitos e, pensando nisso, essa versão adicionou um pai muito relutante e brigão, além de pequenos desentendimentos entre os irmãos, que não existem na obra original. Além disso, insere um romance que é apenas platônico no livro, o que enfraquece um pouco a trama.

Já a versão de 2017 é mais certeira ao mostrar o ponto central do livro: as relações familiares. O livro deixa um pouco a desejar nesse ponto, mas o filme consegue mostrar bem a cumplicidade entre os dois irmãos e o quanto a família é importante para eles. A notícia da morte do pai, inclusive, é muito mais impactante aqui do que no livro. Até mesmo os perigos se tornam mais reais, o que me fez acreditar que o filme e o livro são quase equivalentes em suas qualidades e defeitos.

Cena do filme de 2017, com Maurice carregando Joseph por uma estrada de terra, no meio das montanhas
Mas no livro ninguém fica se carregando por aí

Os meninos que enganavam nazistas (Un sac de billes)
Joseph Joffo
Vestígio, 2019 (originalmente em 1973)
284 páginas
Tradução: Fernando Scheibe