Chegou à igreja em busca de salvação. Não que acreditasse ser possível encontrar redenção, mas precisava tentar. Era a última esperança em meio à espiral de merda que se tornara a vida. Precisou de apenas um dízimo de conversa com o pastor para ser acolhido. E decidiu que ali mesmo se entregaria a Deus. Afinal, prometeram ajuda. Oraram por ele. Jejuaram. Expulsaram o demônio. Hoje era o dia de verem o resultado daquele esforço.

Estacionou o carro do outro lado da rua para acompanhar o movimento. Era hora do culto. O olhar fixo nos portões recém-abertos do luxuoso templo. Nas pessoas cheias de esperanças que chegavam. Quantas vezes não estivera com elas? Saía de casa para encontrar a palavra de Deus, ouvir um alento que fizesse seus problemas sumirem. Um milagre tão prometido e perdido em meio ao esplendor daquela arquitetura, milimetricamente ostentada na área mais nobre da cidade.

Sem perceber, contraiu os lábios e mordeu o canto da bochecha. Eram muitas memórias ao mesmo tempo. A palavra dEle ecoando na mente. Muitos anos passados naquela igreja, fazendo tudo para ajudar o próximo. Pagava suas contribuições em dia, participava das campanhas de conversão e estava ali para conversar com quem precisasse. Mesmo sem ambição para isso, acabou se tornando uma liderança. Viam nele alguém apto a assumir novas responsabilidades no futuro. Começaram a investir em sua formação. E, por um momento, ele começou a se esquecer dos problemas que o levaram até ali e a acreditar que era um escolhido de Deus.

Disseram que ele era alguém colocado no mundo para salvar seus irmãos. Levar a palavra para o máximo de pessoas. E ele embarcou nesse trem. A evangelização era uma missão nobre e essencial, que o vazia se esquecer até mesmo de si mesmo. Todas as semanas, seu trabalho de corpo a corpo em bairros próximos levava mais fiéis para igreja. Quem o via nas missões, acreditava ver um espírito iluminado pelo Senhor. Trazia cada vez mais almas desesperadas e era premiado por isso.

Acreditava tanto naqueles ideais que passou a achar normal as pessoas entregarem o que tinham em troca de uma possível salvação. Viu senhoras abrindo as carteiras e deixando todas as moedas na caixinha. Pais de família passando o cartão de crédito em busca de um milagre a prazo. Ex-viciados passando seus dias no transporte público para vender meia dúzia de canetas para ajudar a igreja. Tudo dentro da normalidade, de acordo com o que Deus queria. Ou pelo menos era o que achava até receber uma mensagem d’Ele.

Foi para isso que entreguei meu filho para morrer?

Ouviu-O pela primeira vez quando estava se preparando para dormir, logo após a oração que fazia todas as noites. Havia acabado de agradecer pelas almas alcançadas quando sentiu o cochicho em seu ouvido esquerdo. Era Ele, tinha certeza. Anos e anos de orações e Ele finalmente respondera. Não entendeu bem o que ele disse, mas agora tinha certeza de que era o escolhido!

Passou uma semana trabalhando o triplo em prol da igreja. Nunca as arrecadações foram tão altas. Nunca tantas almas foram salvas – ou pelo menos era o que ele acreditava. Ao seu redor, porém, as coisas não estavam tão normais. Eram detalhes que fugiam do controle e só alguém com mais atenção perceberia. Era um imã que se mexia e caía quando ele passava. Uma flor que ficava cabisbaixa. Um cachorro que atravessava a rua ao vê-lo se aproximar.

Perceba o mal que você está fazendo em Meu nome.

A segunda vez que ouviu a voz foi bem mais clara que a primeira. Cada palavra bem pronunciada, dessa vez no seu ouvido direito. E, já crente em seu papel como profeta dos novos tempos, teve certeza de que aquela mensagem era para o outro. Qual outro? “Aquele que não vive as verdade de Deus”, pensou.

Os dias seguintes foram ainda mais intensos. A energia extra deixava os irmãos da igreja surpresos. E ninguém se atrevia a falar nada, receosos em quebrar algo mágico que estivesse acontecendo ali. Aos poucos, foi se afastando de todos. Já se considerava em outro plano, acima dos meros mortais. Seu trabalho já não podia ficar no mundano, precisava ir além.

Não há mais salvação para quem se deixou perder em Minha obra.

Cheio de si, ignorou aquela voz que invadiu todo o seu quarto e acreditou que a mensagem não era para ele. Deus o escolhera e estava conversando diretamente com ele. “Eu bem sei os planos que estava projetando para vós. Eram planos de paz”, sussurrou. E decidiu que precisava dar mais um passo em busca do seu lugar ao lado dEle.

O vidro fechado abafava a música que saía do alto-falante. Do lado de fora, ninguém poderia imaginar que aquele homem estava prestes a ascender aos céus. Retirou o galão de gasolina do banco de trás, colocou a arma na cintura e fez um aceno com a cabeça. Estava pronto para ocupar seu lugar de direito. E se Deus não quisesse levá-lo, faria isso por conta própria. E levaria o máximo de irmãos consigo.

Para ler ouvindo: G.O.A.T. – Polyphia

Esta crônica faz parte do Music Experience


Pois é, Caeté, tem quase dois anos desde que você entrou na brincadeira e transformou Capim Canela, do Mc Pedrinho e do Mc Brinquedo, em crônica. Você me desafiou a fazer o mesmo com G.O.A.T , da Polyphia, e acabei não fazendo. Mas decidi retomar agora porque estava precisando desenferrujar meus dedos e porque é só escrevendo que vou conseguir manter minha sanidade nesse período conturbado.

Conversamos brevemente sobre como tá esse isolamento, mas aqui as coisas seguem caminhando na medida do possível. Não é fácil ficar 30 dias preso em casa, sozinho. Às vezes vem um surto, um pico de ansiedade que quase se transforma em um ataque. Mas aprendi a controlar a respiração e colocar minha cabeça no lugar quando vejo isso chegando. Não quer dizer que está sendo fácil, só quer dizer que aprendi a não surtar (tanto).

Estou doido para isso acabar logo para podermos encontrar e colocar a conversa em dia pessoalmente. Sinto falta das nossas conversas intermináveis sobre a vida e sobre o nada. E acho que agora é um bom momento para retomar essa brincadeira de escrever crônicas e me aproximar de você de novo. Se quiser continuar, vamos ver o que você vai fazer com a música Pensa Bem, do daBossa.