Fernanda começou o dia com uma briga. Desentendimento bobo com o filho, mas que foi suficiente para estragar seu bom humor matinal. Não, não o deixaria ir àquela festa com os amigos. Não depois dele ficar de recuperação em quatro matérias e ainda ter a cara de pau de dizer que estudou. Sabia bem que ele matava aula, era um cafajeste com as meninas, fumava escondido, andava com más companhias. Chegou em casa bêbado várias vezes. Para completar, encontrou um pacote cheio de maconha escondido na gaveta de cuecas. Ele só tinha 15 anos, poxa. Precisava ter uma conversa séria quando ele voltasse da aula. De novo.

Rafael chegou atrasado à redação. Além de ter acordado mais tarde que o planejado, enfrentou um congestionamento monstro. O resultado foi uma hora de atraso e a pior pauta do dia em sua mesa. Segundo as primeiras informações, um homem havia assassinado a esposa e os dois filhos. Depois havia se suicidado. E lá ia ele cobrir o caso. Nas costas, além do peso da história, o medo de uma possível demissão. O jornal não ia muito bem nas vendas. Anunciou que cortaria pessoal até o fim do mês e reduziria o salário, que já era baixo, dos restantes. Sentia-se descartável. Que seus mais de 15 anos de profissão não adiantavam nada. Às vezes pensava em chutar o emprego, desistir de tudo. Mas sabia que o mercado estava ruim. Iria para onde se saísse dali?

Ingrid perdeu seu primeiro paciente. Sentada em um canto, sozinha, chorou. Ninguém ousou consolá-la. Não adiantava. Sabia que isso podia acontecer a qualquer momento. Sempre avisaram isso para ela, seja na faculdade ou nos hospitais em que trabalhara. Achou que estava preparada. Descobriu que não. Quando viu os batimentos cardíacos diminuírem e a respiração ficar mais ofegante, não teve reação. Entrou em pânico. Justo ela, uma cirurgiã treinada e com anos de experiência. Maldita hora que a transferiram para a urgência. Não suportava aquele lugar. As pessoas chegavam em estado crítico, quase sem salvação. Fizera milagres com alguns pacientes, mas este não resistiu. Não sabia se tinha preparo psicológico para aguentar aquilo.

Eduardo não conseguiu dormir direito. A insônia já o incomodava há meses, impedindo-o de descansar. O rosto, antes tão bonito, estava marcado por olheiras profundas. Nenhum médico conseguiu ajudá-lo. Nem remédio. O problema era tão sério que até sua vida sexual estava afetada. Há mais de um mês não fazia sexo com a esposa. Após mais uma tentativa frustrada pela manhã, saiu para o trabalho. Seus colegas já haviam desistido de tentar animá-lo. Sentado em sua baia, permaneceu quieto durante todo o dia. O rendimento estava abaixo do esperado. Os resultados não apareciam e o chefe apresentou os primeiros sinais de impaciência. Queria dar pelo menos uma cochilada no horário de trabalho. Para o bem de todos.

Natanael ficou em casa o dia inteiro. Nem tirou o pijama. Apenas ligou o computador e passou horas imerso em seu livro. Escreveu a manhã e a tarde toda, mas não estava feliz. Sentia que o material era ruim. Apesar da ideia ser boa, colocá-la no papel não estava dando certo. As palavras não se ligavam. As ideias não fluíam. Nada funcionava. Não era um bloqueio criativo, as crônicas ainda saíam com a facilidade de sempre. Era um problema com aquele livro em específico. Não sabia como resolver e o deadline já batia em sua porta. Recebeu um e-mail da editora, já no fim da tarde, que sutilmente o pressionava para entregar a primeira versão da história. Mal sabiam eles que não tinha nem o começo.

Denise foi a última a sair da agência naquele dia. Semana com concorrência era assim mesmo, regada à pizza e noites mal dormidas. Estava cansada e a cabeça não parava de funcionar um segundo. A sensação de que a proposta ainda não estava 100% ficava cada vez mais forte. Tinha certeza que nada nela faria os olhos do cliente brilharem. Não conseguiram extrair nada das pesquisas, planejamentos, brainstorms, esboços. A chance de conseguir a conta era baixa, mas a agência precisava muito dela. Era isso ou continuar com os jobs medíocres que os sustentavam com pouco dinheiro. Para completar o bom humor, uma garoa começou a cair quando saiu do prédio. A sombrinha, lógico, havia ficado em casa.

Só eles sabiam a confusão que a vida havia se tornado. Nenhum deles planejou estar desse jeito a essa altura. Cabisbaxos. Sem auto-estima. Confusos. Mas quando se sentaram à mesa do bar, juntos, como faziam todas as quintas-feiras desde que se conheceram, os problemas foram embora. Desabafaram, riram, contaram casos do trabalho, da família. Ficaram bem por algumas horas. Eram amigos. Podiam contar uns com os outros. E sempre poderão contar, apesar de tudo.

Para ler ouvindo: I’ll be there for you – The Rembrandts, ou na versão do Boyce Avenue

Esta crônica faz parte do Music Experience