Foi no exato momento em que minha boca se abria numa ânsia suculenta de abocanhar aquele incontestável pedaço de torta de frango que ele felinamente se postou ameaçador diante de meus semicerrados e até o momento extasiados olhos. Transmutada alegria: espanto. Espasmos imóveis e calafrios eriçantes ruborescedores. Veias urrantes em alarme contra a corpórea presença daquela ameaça inquietantemente assassina. E nada além podia divisar, a não ser o vulto nitidamente imponente que, em meio à névoa do medo, bruxuleava impassível. Impedida de se deixar cair, minha mão esquerda segurava o garfo como se fosse ele próprio a vida a fios apenas de escapar. Permaneci gargular e sincronicamente alinhado com a exigência do momento. Uma estatuética existenciazinha, oxalá não notada.

Talvez fosse cego… Mesmo assim sentiria o fedor do medo relutantemente exalado de meus apavorados poros. Melhor se talvez também surdo: a qualquer momento, se meu coração perdesse o compasso, minha lastimável presença seria desvelada. Ou então se fosse paralítico? Demente? Quem sabe esquizofrênico? Sabe-se lá por quanto tempo esses jogos mentais me acalmaram. Tempo suficiente, ou até mesmo excessivo, considerando-se a natureza da situação. Por que não me matava, simplesmente? E por que eu insistia em encará-lo?

Creio que todos nós aprendemos pelo menos uma lição com o cinema: se começar a encarar, nunca desvie o olhar. Acho que era nisso que eu apostava. Manteria meus olhos fixos nos dele, perscrutando suas ignóbeis intenções, ao mesmo tempo em que tentaria esconder minha alma atrás de uma expressão totalmente forçada. Mais do que simplesmente enfrentá-lo, era crucial manter as aparências. Um mínimo detalhe interpretado como descontrole poderia ser fatal. E como minha noção de tempo já não mais vigorava, comecei a acreditar que havia atingido um estágio confortável de igualdade. Ocorreu-me que ele também se sentira intimidado. Exatamente! Ele também se sentia em perigo! Isso me levava a uma contundente conclusão: o mínimo detalhe interpretado como descontrole dele também seria fatal. E assim permiti-me regar a esperança de sair vivo.

Havia uma parca luz no fim daquele profundo túnel. Mas o problema parecia-me bastante complexo de se resolver… E se a solução estivesse muito além de minha capacidade? Seria preciso encontrar uma rota alternativa, é claro! Eu não me sentia disposto a desistir sem tentar. Entretanto, ainda estava paralisado. Embora tivesse plena noção de que era necessário fazer algo o quanto antes, parte significativa de mim relutava. O medo do movimento errado imperava: qualquer escolha não sábia geraria um desfecho desastroso. Irreversível. Inexorável. O próximo movimento levaria ao cheque-mate, independentemente do jogador que o executasse. E isso me atormentava. O poder da mudança também é terrificante! Ou o seria apenas o pressentimento da falha?

O tempo passava e essa questão crescia dentro de mim como se quisesse rasgar caminho até a superfície. Eu já não sabia se era justificável agradecer pelos segundos extras de vida arrastados. Aquilo definitivamente estava longe de uma existência agradável e eu nunca fui adepto do acordarcomerdormir. A situação precisava ser resolvida. E rápido! De uma vez por todas! Mas, ao mesmo tempo em que pensava positivamente, acometia-me um acovardamento perfeitamente plausível: se eu esperar mais um pouco até o momento certo… Mas… E se o momento certo for agora? Pior: e se ele já tiver passado? Um maremoto de possibilidades inundava-me, afogando qualquer intenção de agir. O ar rareava e a superfície estava distante. E isso perdurou. E isso perdura. Ainda não fui capaz de me mover. Nem ao menos sei há quanto tempo estou petrificado. Estou à beira da loucura e, por incrível que pareça, tenho quase certeza de que o que me encara é o espelho.