Todos os dias eles pegavam o ônibus no mesmo horário. Ela, que subia no primeiro ponto, sempre se sentava no mesmo lugar – primeiro banco após a roleta. Ele subia alguns pontos depois e não tinha um lugar fixo. Sua única exigência era poder vê-la por todo o trajeto.

A paixonite já durava semanas e ele não tinha coragem nem de se aproximar nem para dizer um oi. Milhares de possibilidades rodavam enquanto o ônibus passeava pela cidade. Em um cenário muito otimista, ela já havia notado quando ele entrava e também estava caidinha de amores. Em um cenário pessimista, ela mudaria de horário no dia seguinte e ele nunca mais a veria.

Tudo isso continuou até uma fatídica segunda-feira. Quando ele entrou no ônibus, percebeu que o único lugar vago era ao lado dela. Pânico! Uma gota de suor se formou em sua espinha e ele começou a tremer enquanto tentava passar o cartão de passagem. Ignorar o lugar e ficar em pé não era uma opção viável. Tinha que agir como um homem e se sentar ao lado dela.

“Ei, lógico que eu não vou me sentar aí! Vou ficar em pé lá no fundo e você não pode me julgar nessa.”

[Cortar a última frase anterior na edição final]

“Não vai cortar nada! Quem é você para me obrigar a sentar ali?”

Então ele fez um esforço para tirar a máscara de desespero e se sentou “Não. Para com isso agora!” ao lado “Não me obriga!” dela “Merda”. Ajeitou a mochila no colo e “cruzou os braços em protesto” tentou ficar o mais confortável possível. Não dava. Por dentro ele era só tremores e inseguranças.

“Para de falar como eu devo me sentir, sua crônica idiota! Você já me obrigou a sentar aqui, agora me deixa QUIETO.”

De fones de ouvidos, ela parecia não perceber que ele havia se sentado ali. Era a grande chance que ele tanto esperara “Não é não! Você que está dizendo isso. Eu vou continuar pegando esse ônibus todo dia!” e demorou metade do caminho para reunir o máximo de coragem para cutucar “Isso é sério?” de leve o ombro daquela mulher. Em um movimento automático, ela tirou o fone e olhou para ele, curiosa “Vai dar merda, tô avisando!”. Ele retribuiu o olhar e gaguejou:

“Espera aí, eu não vou gaguejar porra nenhuma!”

– Err… oi “Para de enfiar palavras na minha boca! Isso foi ridículo!” O que você está ouvindo? “Além de ridículo eu preciso soar intrometido? Falei que era melhor ir lá para trás!”.

– Clarice Falcão, conhece?

“Lógico. Acho uma bosta.”

– Lógico. Curto muito as músicas dela. “Mentiroso” Até a que ela fez pra propaganda do supermercado é legal “Para de mentir. É a pior de todas!”. Aliás, acho que já te vi no ônibus “Jura?”. Você pega todo dia nesse horário?

– Religiosamente. Se não pegar esse, chego atrasada no trabalho.

– Sei bem como é, trânsito… “Isso mesmo, agora começa a conversa de elevador”.

– Pois é. Você também pega sempre esse horário, não é mesmo? “Oi?” Já te vi algumas vezes por aqui. “Sério?”

– Todo dia, no mesmo horário e local. E preciso confessar, já venho reparando em você há muito tempo “Sutileza mandou lembranças”. A única coisa que me faltava era coragem pra vir falar contigo.

– Devia ter vindo antes. Não vou negar que também reparei bastante em você “Fácil assim, dona crônica? Vai ser essa a resolução do problema?” Bom que agora vou ter companhia nas manhãs.

– Mas não nessa. Meu ponto tá chegando, então será que você podia me passar seu número de telefone “Seu covarde, você vê ela todo dia no ônibus” pra gente marcar de sair ou algo assim.

– Isso quer dizer que você não vem mais nesse ônibus? “Menina esperta!” Estava esperando encontrar com você amanhã.

– Ah, é mesmo. Agora deixa eu descer que meu ponto está chegando. Até amanhã!

Ele se aproximou para dar um beijo no rosto de despedida, mas ela se virou na hora. Os lábios se encontraram e lá ficaram, juntos. Ele, encabulado, puxou a cordinha para dar o sinal e correu para a porta. Nem olhou para trás.

“Tem certeza que quer acabar nesse clichezão? Essa merda não combina comigo”

E desceu do ônibus com um sorriso no rosto. Ela, da janela, acompanhava os passos dele pensando em como seria no dia seguinte.

“Obrigado.”

Para ler ouvindo: Surreal – Rafael Fontana

Esta crônica faz parte do Music Experience